terça-feira, 15 de maio de 2012

Vidas suspensas


DESAPARECIDOS:
ausências que fazem o tempo parar

As causas, as sequelas, as estatísticas. Entenda como seria possível prevenir as ocorrências e por que os casos sem solução ilustram um drama de impacto social cada vez maior em Salvador

Perder um filho, mãe, pai ou irmão e não saber onde eles estão é uma realidade diária na capital baiana. Em dez anos, foram quase 8 mil pessoas que se ausentaram sem vestígios e mesmo após a localização ou retorno, ainda restam 2.250 pessoas extraviadas. Em média, são dois cidadãos que somem todos os dias nos bairros soteropolitanos, especialmente na periferia, mas os números podem ser muito mais expressivos. Má vontade política, descaso, falta de delegacias especializadas e de integração entre os órgãos competentes, investigação precária e núcleo familiar sem estrutura são os componentes  encobertos  pelas estatísticas. Por sua vez, o Estado patina ao tentar viabilizar políticas públicas eficazes. Números de ONG's sugerem 40.000 pessoas deslocadas dos seus domicílios, mas ninguém sabe ao certo quantos desaparecidos existem atualmente no Brasil. Enquanto isso, a espera dos familiares pode ser longa. Às vezes, dura uma vida inteira estagnada: sem notícias, sem definição.


Foto: Tom Correia

Então é assim que acontece. A pessoa que você mais ama, uma das mais especiais, a quem você dedica parte substancial de sua existência, lhe dá um beijo, acena ou faz um carinho, diz algumas palavras corriqueiras, sai pela porta em direção à escola, ao trabalho, à esquina, e simplesmente desaparece. Não importa a idade, o parentesco. Criança, adulto, idoso. Pai, mãe, filho. Irmã, sobrinho, esposa, marido. Não importa o motivo, se por uma discussão em casa, se conheceu um estranho na rua ou pela internet, se foi alvo de rapto ou queima de arquivo. Façam parte de situação de risco ou não, sofrendo de doença mental ou não, quem parte desconhece a dimensão da dor provocada pelo vazio. Quem fica para trás, com aperto no coração, só começa a perceber que algo mais sério aconteceu depois que as horas se multiplicam, os dias se desdobram. 

Sábado, dia dos namorados, 2010. Luciano Santos, 29, levantou-se cedo, arrumou suas coisas e conferiu no relógio que estava atrasado, já havia perdido o ônibus das sete da manhã que o levaria até a Brasquímica, fábrica de produtos asfálticos do Distrito Industrial de Candeias. Morando no bairro de Águas Claras, vivendo há sete anos com a vendedora ambulante e evangélica Diene Lima, 32, Luciano deu o presente da esposa, um kit de óleo corporal da Natura e recebeu um perfume Kayak. Pai de Amanda, 4 anos, e padrasto amoroso de Jennifer, 15 e Richard, 9, o operador industrial estava em ascensão profissional: começara como auxiliar de serviços gerais e, em cinco anos, foi promovido três vezes. Para encorpar o orçamento, Diene vende bebidas numa barraca no Centro Histórico. Antes de sair, ele deu um beijo na mulher e disse: “Se eu não vier pra casa, encontro você no Pelourinho”. 

De acordo com a Polícia Interestadual da Bahia - Polinter, entre os anos de 2000 e 2009, foram registrados em Salvador 7.632 desaparecimentos, mas detalhes como bairro, gênero e idade só foram coletados em 2008 e 2009. “Este ano decidiram não pedir mais isso. Ainda bem, não sei pra que servia”, diz a escrivã responsável pelos relatórios mensais enviados ao Centro de Documentação e Estatística Policial da Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA). Caso o governo quisesse levantar um perfil preciso de quem some todos os dias nas ruas soteropolitanas, enfrentaria dificuldades. Sem uma base de dados precisa, futuras e hipotéticas campanhas específicas de prevenção estariam prejudicadas. Uma das intervenções possíveis seria mapear bairros com maior incidência, levantar a faixa etária mais frequente das vítimas e, a partir disso, ministrar palestras educativas nas comunidades, além de informar a população sobre seus direitos e orientá-la quanto a procedimentos diante de algum caso na família. Ainda segundo a Polinter, 5.377 pessoas foram localizadas entre vivas – retornando aos seus lares, encontradas por outras pessoas –  e mortas, com entrada no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues. 

A Praça da Piedade já foi conhecida como local dos fotógrafos lambe-lambe e moradia de camaleões, ambos erradicados por razões distintas: tecnologia e ignorância. Os familiares de pessoas desaparecidas já demarcaram território ali, transformando o local numa espécie de quartel-general de lamentações, esperanças renovadas a cada aparição de vinte segundos na tela durante a exibição semanal do quadro que vai ao ar desde 2001 pela TV Bahia. No final da manhã de uma quarta-feira, Diene e outras esposas, pais e parentes de quem sumiu, conversam entre si, sentados na Praça da Piedade à espera do início da transmissão ao vivo. Enquanto aguardava, ela lembrava o frio e a agonia que tomaram conta do seu corpo na noite que dormiu sem o marido. Passou a noite em claro imaginando situações que podiam estar sendo vividas por Luciano. No dia seguinte, soube que ele não havia aparecido no trabalho e só então a família iniciou as buscas. “Fomos na Polinter, mas mandaram a gente procurar primeiro nos hospitais todos e só depois registrar a queixa. A gente procurou HGE, Roberto Santos, Ernesto Simões e fomos pro IML, onde tinha quatro corpos não identificados. Nenhum era ele...”, recorda.

Diene Lima: em busca do marido que se 
foi no dia dos namorados. Foto: Tom Correia
A situação vivida por Diene é parecida com a de Vanda Francisca, 73, também sentada na praça. A senhora negra, moradora da Fazenda Grande do Retiro, buscava informações sobre o filho, Valdir Moreira, 43, que há quatro meses não dava notícias. “Ele saiu para trabalhar no projeto Minha Casa, Minha Vida pros lados de Camaçari e nunca mais retornou”, conta. Segundo dona Vanda, Valdir sempre foi muito pacato, chegando a ser tímido, e não tinha motivo para sair de casa daquela forma. A aposentada diz ainda que não havia registrado queixa na Polinter porque ali era “coisa muito séria”, e o filho podia se chatear também se visse seu rosto mostrado na TV. Na semana seguinte, ela retorna à praça, faz seu apelo no quadro da TV Bahia e presta queixa na Polícia Interestadual. Depois, caminha até o prédio onde fica a ONG Interbusca Desaparecidos,  inaugurada em 2008, e entra na fila de atendimento. Explica novamente que não sabe o nome da empresa onde o filho trabalha, que não vai ao IML porque é “complicado”. O rosto expressivo de dona Vanda, mãe de 11 filhos, não demonstra lamento ou traço de desespero. Volta para casa e dá uma olhada no beliche vazio onde o filho “pacato, muito pacato”, passava os dias de folga ouvindo cantores antigos, como Nelson Gonçalves e Orlando Silva.

Um ambiente hostil
O prédio da Secretaria de Segurança Pública tem intensa movimentação. Da entrada principal até o anexo de fachada cinzenta, são cerca de setenta passos. A descida lateral leva às dependências da sede da Polinter no estado da Bahia. Corredores acanhados, móveis gastos e arrumação descuidada das estantes são um cartão de visita desanimador para quem precisa recorrer ao órgão. Numa das paredes, há um pequeno quadro com fotos impressas e desbotadas de pessoas que saíram pela porta e não retornaram; muitos nem quiseram se despedir: os que fugiram espontaneamente. Agentes fazem perguntas e preenchem os boletins de ocorrência. O atendimento é lento. A todo instante os telefones tocam. A pessoa precisa aguardar ali, paciente, na expectativa de que o registro seja o início de buscas que terminem com a rápida localização de quem sumiu mundo afora. A sala possui dois monitores de TV que mostram em circuito fechado imagens escuras da carceragem. Um relógio branco, com a base quebrada, está grudado à parede de pintura gasta. Há um papel A4 com a impressão: 'Tempo de Visita: 10 minutos'. Outro servidor chega e atende uma ligação. Alguém informava a localização de um cidadão com distúrbios mentais. “Só podemos tomar providência se tiver registro aqui”, diz o agente, 22 anos de profissão, há quatro trabalhando no setor. “Ligamos hoje para os familiares, vamos ver se a delegacia pode fazer alguma coisa. Vamos ver aí, vou te dar um retorno”, desliga.

Segundo o Sindicato dos Policiais Civis do Estado da Bahia – Sindipoc, atualmente existem 4 mil agentes policiais, 3.500 viaturas e 48 investigadores, dos quais 12 são lotados na Polinter. São esses doze agentes os responsáveis pela investigação de casos em todo o estado. Em 2010, a dotação orçamentária da Secretaria de Segurança Pública foi de cerca de R$ 2 bi. Entretanto, para o vice-presidente do Sindpoc, Marcos Maurício, a mudança da atuação da SSP não depende de altos investimentos. “É necessário que a sociedade não seja mais punida, mas apresentada a soluções envolvendo outros setores além do âmbito do órgão. Para estabelecer mudanças efetivas há um gargalo a ser superado: independente de ideologias, a SSP é fatiada por partidos políticos”, critica. 

Luciano saiu de casa e caminhou cerca de vinte minutos até o Posto Caramuru, às margens da BR-324. Tomou um cafezinho, fumou um cigarro e conversou um pouco com o vendedor de mingau, talvez lembrando do vasilhame de suco que havia sumido da geladeira no meio daquela semana. No refeitório da Brasquímica, onde cerca de 80 funcionários se reúnem todos os dias na hora do almoço, faltava o líquido num recipiente cujo dono, Valdomiro, ficou possesso ao descobrir o pequeno furto. Passou a xingar a mãe de todos os colegas, disparando palavrões para todo lado. Para defender um dos amigos, Luciano discutiu com Valdomiro, com quem não falava há três anos, chegando a chamar o rival para a briga. Diene soube do fato e aconselhou o marido. “Deixa de arrumar confusão, menino”. Já Luciano fez um alerta: “Se acontecer alguma coisa comigo em Candeias foi ele e Messias [outro desafeto]”. A queixa foi registrada dez dias depois do desaparecimento. Durante semanas seguidas, a família circulou em busca de pistas que revelassem o paradeiro: Centro Industrial de Aratu, Simões Filho, Mapele, Ceasa. Baseados em informações que recebiam da Polinter, viajaram em vão para procurá-lo em Castro Alves, Amélia Rodrigues, Humildes e Conceição do Jacuípe.


Foto: Tom Correia

No Brasil não existem delegacias especializadas em buscas de desaparecidos. A Polinter é responsável originalmente pela busca e apreensão de foragidos mediante mandados judiciais, além de manter a custódia dos presos. Na unidade de Salvador, o telefone é o meio mais usado para se localizar desaparecidos nas delegacias, hospitais, IML’s e juizados. A internet não é um recurso corriqueiro: na parte térrea do setor, há três terminais de computador, um deles para o registro da ocorrência. Os dados não estão disponíveis aos cidadãos, apesar de a página virtual da pasta de Segurança Pública expor a quantidade de homicídios, roubos e furtos. O serviço de estatística policial na Bahia existe desde 1895, ano de criação da secretaria. O primeiro princípio fundamental das estatísticas oficiais foram estabelecidos pelas Organizações das Nações Unidas em 1994. O capítulo trata da relevância, imparcialidade e acesso universal e diz que as estatísticas oficiais representam um elemento indispensável ao sistema de informação de uma sociedade democrática, oferecendo ao governo, à economia e ao público, números sobre a situação econômica, demográfica, social e ambiental. E mais: os órgãos oficiais devem reunir e disponibilizar de forma imparcial, estatísticas de utilidade prática comprovada, para honrar o direito do cidadão à informação pública. Sem dados de qualidade, torna-se inviável implementar de imediato iniciativas que tratem do tema de modo específico. O perfil exato de quem desaparece todos os dias em todo o território nacional é desconhecido. Entretanto, pelos dados esparsos e colhidos em diferentes fontes, percebe-se que os negros, pobres e baixo nível de instrução são os que formam o exército camuflado atrás dos números. 

O dossiê de sessenta e duas páginas que compõe o inquérito sobre o desaparecimento de Luciano apresenta desde o boletim de ocorrência registrado por sua esposa, até o relatório final assinado pela delegada Patrícia Boeno, responsável pelos encaminhamentos no setor. São termos de declarações, ordens de serviço para empreender diligências, encaminhamento ao delegado titular da circunscrição policial onde o fato aconteceu, solicitação de informações à Brasquímica, pedido de localização ao Instituto Médico Legal, ao Serviço Ambulatório Móvel de Urgência (SAMU), depoimentos de mãe e esposa, colegas de trabalho, diretor da empresa, solicitação da gravação de câmeras dos coletivos que Luciano teria utilizado. O trâmite todo, estritamente dentro do que a Justiça determina, além de engessar as buscas, pode ter colocado a vítima em perigo a cada minuto perdido entre tantas idas e vindas de documentos. Diene não teve acesso ao inquérito e também não soube responder se o fato do pai dela ser policial civil implicou tratamento diferenciado e interesse especial dos agentes da Polinter. Mas de acordo com os parentes de pessoas desaparecidas entrevistados, a lentidão no acompanhamento dos casos é fato unânime, sem falar na mais grave das distorções descobertas no órgão: a “terceirização” das investigações. Os agentes recebem informação e repassam aos familiares, que ficam com a responsabilidade de ir até o local onde a pessoa em questão foi vista. 

No setor, o cidadão recebe minimamente informações que resolvem uma situação específica. As orientações são verbais, nenhum tipo de cartilha ou informativo é distribuído. Durante a apuração das estatísticas para esta reportagem, o eletricista Neemias de Souza, 38, chega pedindo informação sobre um corpo carbonizado, encontrado em Mirantes de Periperi. A suspeita é de que seja o cadáver de Jorge Luiz de Souza, 43, irmão de Neemias, mas o reconhecimento é impossível. A servidora presta informações, anotando no mesmo pedaço de papel que o homem trouxera da 5ª Delegacia: conseguir foto de Jorge sorrindo, ocorrência do levantamento cadavérico, dirigir-se ao Instituto Médico Legal pedir ofício e se submeter a exames. Não dizer que é DNA, um alerta importante, repetido duas vezes. Os exames de DNA feitos a partir de ossos, custam em torno dos R$ 5 mil, uma das razões pela qual os pedidos não são atendidos de pronto. “Tenho um mês de empresa e hoje tive que pedir folga pra tentar resolver isso. Passei o dia inteiro na delegacia”, relata. Ele conta que vai ser difícil achar fotos ou documentos do irmão, que tinha uma vida sem rumo, vivendo de favor com outra irmã. Com o pequeno papel rasgado na mão, Neemias carrega no semblante uma expressão de múltiplas interpretações. Apreensão, mau pressentimento, uma certa resignação com o destino errante de Jorge. Ao término das recomendações, sai, o ar preocupado com o que poderia ouvir do novo chefe.

Desde a aprovação da Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado da Bahia, em fevereiro de 2009, o Setor de Desaparecidos da Polinter está submetido ao Departamento de Homicídios. Para a delegada Patrícia Boeno, a nova lei deverá agilizar o processo de investigação. “Todo o processo de buscas depende de uma série de autorizações judiciais, mandados e ao passar para homicídios, que já tem experiência em lidar com esses trâmites”, afirma.  O vice-presidente do Sindpoc não vê os efeitos da Lei Orgânica da mesma forma. “Na prática não muda nada. O câncer que mata a SSP são os interesses políticos que travam medidas eficazes que mudem a atuação do órgão junto à sociedade. É uma doença social que precisa ser tratada”, discorda. Engana-se quem pensa que os aspectos sociais do desaparecimento são considerados no Brasil. Há um clima de desconfiança e incerteza pairando no ar, reforçado pelo ambiente onde os registros são feitos. Em 1999, Mari Neide dos Santos, foi obrigada a procurar a Polinter para registrar queixa do sumiço de sua filha, Alice Ane Giselle dos Santos, na época, com 10 anos. “Parece que pra eles desaparecer não é uma coisa real, difícil de acontecer. Então eles não levam muito em conta se alguém chega e diz que quer prestar conta de um sumiço. Eu penso de forma eles deveriam parar para analisar o que está sendo exposto pra eles tirarem uma conclusão”, afirma. 

Timidez da imprensa, leis vazias
Foto: Tom Correia
Em Salvador, poucas vezes a imprensa se dedicou a aprofundar o assunto. Limitada a apresentar parentes que fazem apelos enquanto carregam cartazes feitos de cartolina com fotos de quem desapareceu, o serviço prestado pela TV Bahia e TV Aratu se restringe a tentar localizar as pessoas expondo seus retratos. Para Andrea Silva, repórter da TV Bahia, a imprensa, ao mesmo tempo que sente necessidade de cobrar mais das autoridades, fica receosa de melindrar suas fontes. A jornalista, uma das apresentadoras do quadro, acredita que o papel da imprensa deve ser mais incisivo. “Precisamos aprofundar as reportagens, cobrar das autoridades, ver se eles investigam mesmo, mas nossas chefias acabam com medo de ser um tiro no pé, de terminar fragilizando a relação com a polícia, já que também precisamos do trabalho deles. Tenho muita vontade de fazer uma grande reportagem, mas não tenho autonomia, existe uma hierarquia a ser seguida”, afirma. Mesmo com a crescente difusão de casos, o Brasil avançou muito pouco no sentido de instituir programas voltados para prevenir e atenuar as consequências do problema. Nunca houve no país uma campanha estatal para divulgar, alertar e orientar a população sobre as particularidades do tema. Iniciativas de relativa simplicidade, como a criação de uma linha telefônica nacional para o registro e notificação de avistamentos e pistas, não parecem ser cogitadas pelas autoridades. A Secretaria Especial de Direitos Humanos criou a Redesap, página virtual voltada para a questão, mas que atualmente disponibiliza estatísticas defasadas, apresentando 1.247 crianças e adolescentes desaparecidos no Brasil. A Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD), as Mães da Sé, com sede em São Paulo, estima em cerca de 45 mil pessoas que se perdem de vista todos os anos. 

O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, lei 11.259 sancionada em 2009 pelo presidente em exercício José Alencar, pretende unificar todas as informações sobre o assunto, mas ainda não foi colocado em prática. Os grandes avanços, ainda que sejam na extremidade teórica do problema, ficaram por conta das emendas propostas pelo deputado Federal Eduardo Amorim (PSDC/SE). O texto apresentado por Amorim contempla a oferta de assistência psicológica aos familiares dos desaparecidos; a previsão de divulgação, em locais de circulação pública, de informações sobre os desaparecidos; e a notificação, pelo sistema de saúde, sobre atendimento de paciente incapaz de se identificar. Outro aditivo importante à lei é a abrangência de todas as faixas etárias dos que estão sendo procurados pela família. Autora da proposta de criação da CPI dos Desaparecidos, a deputada federal Andreia Zito (PSDB/RJ) acredita que crianças e adolescentes aliciados por uma rede de tráfico humano só poderão ser resgatadas e protegidas quando o Estado se sentir responsável pelo problema. “A questão toda só vai começar a ser resolvida quando o Brasil criar delegacias especializadas com agentes treinados para o tratamento dos desaparecidos”, prevê. Para efeitos de parâmetro, guardando as proporções devidas entre contextos históricos e socioeconômicos bem distintos, o fenômeno tem recebido um tratamento diferente em países como Estados Unidos e Canadá, onde uma série de iniciativas, como um alerta disparado pela polícia veiculado imediatamente pelos meios de comunicação. 

Apoio  emocional
Foto: Movimento Simone Pinho
Enquanto Diene contava sua história na praça, moradores de rua dependuram suas roupas maltrapilhas nos gradis desenhados por Carybé, Edileuza Mello, 36, também buscava a mídia como alternativa para encontrar o irmão, José Walter Mello, 32, que sofre de esquizofrenia. Morando há dois meses em Salvador junto com a mãe, em Valéria, Walter teria sido influenciado por parentes e passou a achar o bairro perigoso, e passou a querer voltar para Água Branca, Alagoas, sua terra natal. “Com 22 anos ele era normal, tinha namorada, objetivos. Mas aí começou a se isolar, não queria mais comer, vivia olhando pras telhas”, relata. Edileuza relata que seria bom se houvesse um local de atendimento de apoio específico às famílias envolvidas em casos parecidos com os seus. Em Salvador, o Ministério Público, através do Núcleo de Atendimento para Assuntos Criminais (Nacrim), oferece atendimento presencial também para familiares de pessoas desaparecidas, apesar do foco ser os vitimados por práticas delituosas, como homicídios, chacinas e ameaças de morte. Entretanto, de março a setembro deste ano, dentre os 1.689 cidadãos atendidos pela unidade havia apenas um caso de desaparecimento. O Nacrim é um dos únicos lugares na capital baiana que prestam serviço gratuito sob um aspecto pouco lembrado pelas autoridades: o emocional. “As pessoas chegam aqui muito fragilizadas e além de ouvirmos com atenção os relatos, fazemos o encaminhamento aos Centros de Atendimento Psicossocial [CAPS]. No caso de desaparecido, há um abalo, até porque há uma expectativa, e a coisa pior do mundo é a incerteza”, explica a promotora Solange Rios, coordenadora do núcleo. O que ficou flagrante é o desconhecimento recíproco do funcionamento dos órgãos que deveriam trabalhar de forma conjunta: a Polinter não informa nem encaminha as pessoas ao Nacrim; este, por sua vez, acredita que a Polinter oferece acolhimento psicológico ao cidadão. 

Luciano gostava de passear com a família aos domingos, quando iam a uma churrascaria do bairro. Tranquilo e brincalhão, falava com todos na vizinhança, mas quando ingeria álcool terminava se envolvendo em brigas. Duas delas, por sinal, foram com o próprio irmão, Marcos, que também gosta de beber. O fato aconteceu quinze dias antes do desaparecimento. Apesar do relacionamento familiar ser marcado por desavenças – Diene, por exemplo, não fala com a sogra nem com o cunhado; estes suspeitam do pai de Diene pelo fato dele ser policial civil – A mulher não acredita que Luciano tivesse motivos para desaparecer. “Por incrível que pareça a gente tava vivendo ótimo, porque ele tinha parado de beber, e a gente só brigava assim quando ele bebia, entendeu?”, revela. Em relação à “briga feia” entre os irmãos, ela não relaciona um fato a outro. “Não culpo o irmão dele porque tenho certeza, meu Deus, que Marcos nada fez contra ele. Luciano estava até assim meio triste por causa dessa briga... depois o irmão espancou a mulher e foi preso...”.

Estado não aparece
Foto: Divulgação
O espaço vazio que as pessoas deixam nas vidas de seus familiares é tão grande quanto a lacuna o Estado ao lidar com o fenômeno. Um exemplo disso é a participação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Secretaria de Segurança Pública e da Polinter no I Encontro Nacional sobre Pessoas Desaparecidas, realizado em Salvador entre os últimos dias 16 e 17 de setembro. Nenhum representante titular dos órgãos, nenhum delegado ou agente compareceu ao evento. [Nota: a Assessoria de Comunicação da SSP não considerou pertinente a indagação sobre a ausência das autoridades]. Secretário da Justiça e Direitos Humanos entre 2008 e 2010, Nelson Pellegrino afirmou durante o encontro que o poder público deveria dar atenção ao grave problema social, mas admite que o tema não foi estudado embora fosse do conhecimento da secretaria. Perguntado sobre o que faria se alguém de sua família desaparecesse, o ex-secretário e deputado federal se mostrou descrente nos recursos do próprio estado que ele já representou. “Infelizmente, [teria que] fazer o que todos fazem. Procurar nos institutos médicos legais, procurar a Polinter e dar esse conhecimento, investigar na rede social, na internet, vê se há alguma comunicação, identificar relações pessoais. Os instrumentos hoje são limitados”, reconhece.

O deputado estadual Bira Coroa, autor do projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa, afirmou no Encontro que o fato desestabiliza não só pelo próprio desaparecimento, mas a sensação de não poder sepultar um ente querido que terminam envolvidos numa situação trágica. Entretanto, não se sabe quando os efeitos práticos da proposta serão sentidas por quem aguarda o retorno dos que se evadiram de seus domicílios. “O projeto está tramitando, mas claro que há um padrão nas casas legislativas é quando o interessado não é mais um parlamentar, os projetos terminam sendo arquivados, a não ser que um outro parlamentar tenha o interesse de desarquivar”, disse. Enquanto as lacunas se alargam, surgem organizações não-governamentais como o Movimento Simone Pinho (MSP), que durante oito anos ajudou a localizar cerca de 700 pessoas. Sem apoio por parte dos órgãos governamentais, o MSP foi fechado em setembro deste ano devido às obrigações profissionais de Josenilda Lima, fundadora da ONG. Outra iniciativa do terceiro setor na Bahia é o Interbusca Desaparecidos, criada em 2006 e com cadastro de dez casos resolvidos. “Nosso trabalho surgiu graças à deficiência do Estado em investigar os casos registrados na Bahia”, afirma Paulo Reis, fundador da organização. Contando com agentes voluntários, o Interbusca oferece atendimento gratuito. 

Pelo Brasil 
Foto: Carol Garcia
O sumiço do Estado obriga também que iniciativas na área de Tecnologia sejam tomadas por instituições como o Caminho de Volta, que desde 2004 atua em São Paulo. Idealizado pela geneticista Gilka Gattás, o projeto ajuda a localizar crianças e adolescentes na capital paulista trabalhando em quatro frentes: identificação das causas, criação de um banco de DNA para identificar elo genético entre as famílias e os desaparecidos, suporte psicossocial com acompanhamento psicológico desde o início até a solução final de cada caso e capacitação de profissionais através de cursos presenciais e a distância oferecidos aos envolvidos no processo de localização. O modelo tem pontos semelhantes com o que é desenvolvido no Canadá, especialmente no que se refere ao apoio psicológico e ao treinamento de profissionais que lidam com o tema. O trabalho é feito em conjunto com os policiais e uma equipe de psicólogos fica de plantão na delegacia. A família registra a ocorrência, conversa com o investigador e, se desejar, entra no Caminho de Volta. A participação é gratuita e voluntária. O intuito do projeto é conhecer a dimensão do problema e ajudar aquela família em especial. Apesar do governo de São Paulo conhecer um projeto que tem em mãos estatísticas precisas sobre o perfil dos desaparecidos, não há sinal de aproximação para ação em parceria. “Todos conhecem nosso trabalho e nossos resultados. Entretanto, ainda não existem políticas públicas nesse sentido”, afirma Gattás. Mas há também o que comemorar. Recentemente, o Caminho de Volta assinou um convênio com a Secretaria de Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo para realizar um projeto de pesquisa e prevenção ao desaparecimento de crianças com deficiência. “A questão do desaparecimento de pessoas ainda não recebe a atenção e cuidados necessários em nosso país. As medidas ainda são tímidas e as ações já regulamentadas não são implantadas e acho que deveríamos trabalhar muito mais a prevenção”, finaliza.

Estudos realizados pelo sociólogo Dijaci Oliveira, da Universidade de Brasília, apontam que a maioria dos casos são originados por fugas espontâneas, motivadas por fatores diversos, que envolvem desde maus tratos até procura de oportunidades de emprego em outras cidades. Sem aporte emocional por parte do Estado, sem amparo jurídico, que considera legalmente a pessoa morta após dez anos de desaparecimento, os parentes se sentem desorientados. “Pode-se afirmar que a família torna-se refém uma vez que depende da boa vontade das delegacias, da repercussão na mídia ou da influência a partir dos relacionamentos interpessoais”, conclui. Todo o aparato do Estado no que se refere ao drama dos que desaparecem, é voltado para o âmbito policial, sem preocupações quanto a possíveis delimitações. Onde termina uma prática delituosa e onde começa uma carência social é um fator que passa longe da mentalidade de quem decide. É uma hipótese tentadora, ainda que arriscada: camadas socialmente mais baixas são geradoras de desaparecimentos em função da falta de assistência estrutural que envolve serviços essenciais de educação, saúde e emprego. Em resumo, são ausências que surgem todos os dias em decorrência de outras. 

Polinter: 
um relatório inconsistente
Foto: Tom Correia
As mensalidades do colégio da pequena Amanda estão atrasadas. A menina não tem ido às aulas e às vezes chora ao perguntar pelo pai. Luciano pagava a escola e fazia as compras todo mês, mas desde o seu desaparecimento, a Brasquímica não procurou a família para oferecer auxílio. A ajuda de custo inicial no valor de R$ 50 para cesta básica foi suspensa. “O que me segura é que sempre vendi minhas coisas, minha micheline. Também recebo Bolsa Família um aluguel de uma casa de R$ 180, é que tá me segurando, entendeu?”. O relatório de diligências policial (sic) sobre o caso Luciano foi assinado pelo coordenador dos agentes da Polinter, Jerenaldo Borges: “diligências foram efetuadas na localidade de Águas Claras, local onde foi visto o desaparecido pela última vez, na cidade de Madre de Deus, local onde trabalhava a vítima e em outras localidades do estado, sem êxito na localização do procurado. Saliento que, também foram feitas buscas no IML de Salvador e Santo Antônio de Jesus, assim como hospitais da capital, Candeias e Dias D'ávila. Estou dando continuidade às investigações no sentido de localizar o desaparecido”. Já o relatório assinado pela delegada Patrícia Boeno, encaminhando o processo para a circunscrição policial responsável pela área onde a vítima foi vista pela última vez, diz que “a Polinter apenas realiza investigações e adota providências preliminares junto a outros órgãos públicos pertinentes, visando afastar ou não a existência de fato delituoso”. O caso foi transferido para a 13ª Delegacia, localizada em Cajazeiras, mas Diene alega ter dificuldade para falar com os responsáveis pelas investigações. Ouviu do delegado que todos seriam ouvidos novamente, mas as testemunhas e envolvidos não foram chamados. Presença certa nas quartas-feiras da Piedade, ela sempre carrega consigo a foto do marido colada num papel de ofício plastificado. Sua persistência diária para elucidar o caso, porém, está assumindo contornos religiosos. “Meu pai até me chamou pra ir na delegacia, cobrar deles, mas aí eu tô na Igreja... tô recebendo revelações...  agora eu espero o tempo no Senhor...”, reafirma.

Dona Vanda, Edileuza, Neemias e Diene enfrentam seus dramas particulares cada um à sua maneira. Tentam o refúgio na religião, recorrem ingenuamente à polícia ou fazem apelos-relâmpago na TV. À medida que o tempo avança sem esboçar novidades, qualquer tentativa é válida para aplacar o desespero. Em comum, além da ausência dos que partiram não se sabe para onde, resta a eles prosseguir convivendo com a expectativa angustiante de um retorno: eterno suspense que arrasta as horas do cotidiano.

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